Homenagem Viva
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Houve um sol, um só
E então te nublaste
De roupas e flores
E as nuvens ficaram pra sempre
Por mais que eu as tenha chovido
Na terra molhada
De chuva chorada
Aguarda-me um beijo
De lama e de charco
De roupas rasgadas
De flores podres sem cor
Ouve, um sol!
Chilreia um rouxinol
Na chuva
Um corpo
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Sou aquela que guarda
O segredo da resposta
Sou aquela que aguarda
A tua pergunta, descomposta
Sou aquela que te enreda
Mas metáforas do oráculo
Diásporas dos sentidos
Absurdos do vernáculo
Sou aquela que segreda
Os pecados proibidos
'Speculum speculorum'
Sou mais breve que a eternidade
Sou eterna brevidade
Sou o verso do reverso
Sou aquela que declama - e ama - inversos
Sou aquela que, fingida, foge
Sou aquela que fugida, finge
Sou aquela que transige
O que mais te aflige
A fuga é um refugo tão fugaz...
Foge! sem nada ter compreendido
Quando eu me for, terás sabido
Que sou aquela, a ex que finge
Que não é ex; finge...
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Remexe a anca e te destranca
Faz das pernas a cedilha
Destas longas tranças
Que destranças
Ao te afagarem
As lembranças
Das danças
Dos dedos
Dos medos...
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Achei a chave da fechadura tua
Emperrado amor
Maçaneta torta
Abre a porta!
E deixa que o segredo
Do cadeado desse corpo
Eu descubro
Sem a tranca, nua...
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Ah, peça-me um beijo obsceno
Roube de mim o sossego
Tire de mim o juízo
Mas não me venha pedir
Nem um verso sequer
De uma velha poesia
Qualquer
Por que perder tempo
Rabiscando o papel à pena
Quando melhor rima faria
Escrever-te na a pela à língua?
Por que construir uma estrofe
Quadrinha, trova, soneto
Se o corpo teu que adoro
Já é construção, é poema?
Ah, não peça nem mesmo uma linha
Não me prendas à escrivaninha
Liberta-me à cama e ao quarto
E ao amor descabido, farto
O escritor quer da musa a palavra
E da mulher a loucura
Aquela a tinta grava
Esta é a mais bela gravura
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
As letras de fogo
Já escrevi-as todas
Falta agora queimar a carta
Com a chama do teu olhar
Do terrível incêndio que a consuma
Espero não salvar-me dos escombros
Que sobrarão da trágica ruína
Da leitura tua - combustão
Hei de ser as cinzas
Do rescaldo que fará teu pranto
Como foste a brasa viva
Que ardeu o meu desejo - combustível
Corações inflamáveis
Cheios de amores voláteis
Não sobrevivem os amantes
À violenta explosão da paixão - fagulha
O pavio da nossa história chegou ao fim
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
A pena já correra um verso
Dois
Quase um terceto
Foi no fim do quarteto...
O escritor levantou-se
A pena adormecida
A tinta molhada ainda
O escritório vazio...
Fechou-se a porta - rangia
Ganhou a rua - vazia
Molhou-o a chuva - fria
Abandonou a poesia
Sem razão nem motivo
Numa mais fez-se visto
Por sobre o papel
Agora quem chora é a musa...
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Vem
Singra cada onda
Desse mar de desejo
Vagas que se curvam
Em arquejos de sal e suor
Cardumes de beijos
Atravessa a tempestade
O veleiro ao vento
Que as velas infla e rasga
- vestes de nau -
E apaga e ao escuro nos lança
Qual de nós, capitão,
Tem a mão o corpo e o timão?
Vai
Sangra as dunas
Oceano de areia seco
Tom de pele - a minha
Com o leme da escuna
Que me rasga o leito
E me naufraga ao sol
Que bate na janela
Escotilha da embarcação
Que fui
Ao fundo do mar
E da cama
Alga marinha
Algo sozinha
A correnteza leva
A corrente prende
Escuridão abissal...
António Corvo
Ilha dos Corvos - Açores - Portugal
Me entorta
Exorta a não cruzar
A porta
E pede, implora
Talvez mais meia hora
De mentiras macias
Como os travesseiros
Suspira e arca
O corpo, a anca
A ponte que atravesso
Da qual me jogo
Ao jogo de te ver do avesso
Arfa desenfreada
Sobre a fronha esgarçada
E amarrotada
Com que te amarro
Desgrenhada ao pé da cama
E chama, clama
Que o desejo que te assola
Esse corpo de viola
- e rebola -
Rebenta logo num orgasmo
E o espasmo desregula
Tempo e espaço
E o abraço é o que nos resta
Agora deixa que te caia
Uma madeixa pelo ombro
E essa vista se transforme
Em meu assombro
E que eu nunca mais
Te subtraia
De nós dois